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OPINIÃO

LGPD: o Brasil não está preparado

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Autor: Gabriel Schulman –

Após a tumultuada entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), há fortes expectativas das pessoas e das empresas acerca dos desdobramentos da proteção de dados no Brasil. Na Europa, a experiência com a proteção de dados está mais consolidada, o que faz com que seja comum a prática de consultar as estratégias e mesmo legislação europeia para saber como agir. No entanto, a realidade nacional é distinta, com uma cultura, demandas e mesmo legislação diferentes, o que exige que se comece, de fato, a desenvolver respostas brasileiras para o fundamental tema da proteção de dados pessoais.

Parte destas respostas estão nas mãos da ANPD, a chamada Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais, órgão criado com a LGPD, cuja competência, entre outras atividades, inclui a fiscalização e aplicação de sanções, criação de normas, e dispor sobre as formas de publicidade das operações de tratamento de dados pessoais.

No final de janeiro, foi editada portaria que divulga a agenda regulatória da ANPD, movimento que permite enxergar os novos percursos que a entidade tomará. Entre outras providências previstas estão a Definição de Regimento Interno da ANPD e Planejamento Estratégico, as quais sinalizam o momento ainda inicial em que está a Autoridade.

Além disso, está prevista a criação de um marco normativo para startups, pequenas e médias empresas, tendo em vista que a LGPD prevê uma regulamentação diferenciada. Esse ponto é de grande importância na medida em que, diferente da legislação europeia e mesmo da recente lei californiana (CCPA), a LGPD não faz distinções entre deveres das empresas. Em outras palavras, os deveres legais são em maior parte iguais independente do setor, tipo de atividade, ou porte. Um exemplo interessante é a figura do DPO (Data Protection Officer), ou encarregado de dados pessoais, a quem compete a interface com a própria ANPD e com os pedidos dos titulares de dados pessoais, ou seja, com as solicitações das pessoas sobre seus direitos. De acordo com a LGPD todas as empresas – e de maneira geral também a Administração Pública – precisam contar com um DPO. Será que essa obrigação será imposta de fato a todas as 20 milhões de empresas contabilizadas no Ministério da Economia?

Vale notar que a figura do DPO foi destacada como um ponto específico da agenda, afinal, a falta de clareza pode ensejar desafios muito grandes não apenas quanto à necessidade, mas quanto ao exercício da atividade e perfil para a função.

Além disso, a ANPD prevê em sua agenda regular o tema das sanções por descumprimentos de cuidados em matéria de dados pessoais, comunicação de incidentes e relatório de impacto. Embora não se possa decifrar se um papel educacional – e menos sancionatório – está nas entrelinhas, a indicação da preocupação com as situações concretas em que há incidentes com dados pessoais demonstra que o plano não é ficar apenas na teoria. É preciso respostas e procedimentos definidos para as situações que invariavelmente acontecerão.

A divulgação da agenda coincidiu com o Dia Internacional de Proteção de Dados Pessoais, mundialmente comemorado no dia 28 de janeiro. No Brasil, no entanto, parece não haver tantos motivos para celebrar, sobretudo diante da recente notícia do vazamento de uma base com dados da Serasa com 220 milhões de pessoas, entre os quais havia: nome, endereço, dados do imposto de renda, fotos, scores de crédito, gênero, data de nascimento, nome do pai e da mãe, estado civil, vínculos familiares, e-mail, telefone, classe social e título de eleitor – e oferecidos de graça em um fórum de internet.

Se confirmado, será o maior vazamento de dados da história do país, já que foram expostas mais pessoas do que a população viva no Brasil. Este caso, tanto pela quantidade dados, quanto por sua natureza, acende uma forte luz sobre as atividades das empresas e a capacidade de preservar a proteção dos dados que administra e comercializa – e, ainda, ocorre justamente no momento que os bancos brasileiros se preparam para o open banking. Esse episódio deve ser marcado na agenda da ANPD como um dia a ser lembrado. Ao tempo em que a Autoridade ainda inicia suas atividades, o cenário brasileiro demanda medidas efetivas e responsabilização de infratores. Enfim, para que realmente se possa festejar, a LGPD precisa ser uma agenda de todo Brasil.

Gabriel Schulman é doutor em Direito pela UERJ, advogado em Trajano Neto e Paciornik e coordenador da Pós-Graduação em Direito e Tecnologia da Universidade Positivo.

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Artigos

Do medo reprimido à fuga química, o homem que aprendeu a não temer vive refém da própria coragem

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Autor: Nailton Reis*

Neste artigo propõe um caminho para compreender o que a psicologia chama de “fuga da realidade”. Essa expressão, muitas vezes usada de forma genérica, descreve o movimento em que o sujeito, incapaz de lidar com o próprio mundo interno, seus sentimentos, medos e frustrações, passa a recorrer a comportamentos ou substâncias que o afastam de si mesmo.

Aqui, vamos construir um percurso lógico para entender como essa fuga pode acontecer na vivência masculina, especialmente em contextos de masculinidade tóxica e repressão sexual. Este artigo busca elucidar tais questões para complementar a série de textos disponíveis em @iMentesPlurais, trazendo de maneira clara, acessível e didática as discussões que envolvem a dependência química e seus desdobramentos emocionais.

É importante deixar claro que a dependência química não nasce apenas desse modo, e nem toda pessoa dependente passa pelo mesmo caminho. Mas essa é uma das possibilidades de compreensão: quando o uso de substâncias se torna uma forma de sustentar o papel de “homem de verdade”, aquele que não sente, não chora, não fraqueja.

Esse será, portanto, um olhar sobre o meio masculino como espaço de adoecimento e performance. Vamos examinar como a repressão dos sentimentos primários, a inibição emocional e a busca por aceitação social formam o terreno do uso abusivo, quando o sujeito passa a usar a substância para performar um personagem e não para se expressar.

Desde cedo, o homem é ensinado a não sentir. A ideia de “ser homem” vem carregada de mandamentos invisíveis: não chorar, não demonstrar medo, não hesitar, não fraquejar. E há um mandamento que é o mais perigoso de todos: “homem não pode ter medo”. Esse comando parece pequeno, mas ele vai moldando toda a forma de se relacionar com o afeto e com o risco.

  1. – Se eu não posso ter medo, então eu não posso dizer que estou com medo.
  2. – Se eu não posso dizer, eu não posso pedir ajuda.
  3. – Se eu não posso pedir ajuda, eu vou ter que parecer corajoso o tempo todo, mesmo quando estou apavorado.

Na adolescência, esse falso “não tenho medo” se mistura com o grupo e vira espetáculo. O menino que aprendeu a não demonstrar medo em casa, para não ser chamado de frouxo, agora entra num grupo que pede que ele prove o tempo todo que realmente não tem medo. É aí que aparece aquela cena que muita gente pergunta:

Mas por que ele não tem medo da polícia? Por que ele encara a morte, o racha, a briga de rua, como se fosse nada?

Muitas vezes não é que ele não tenha medo, é que ele foi treinado a inibir o medo. O sentimento existe, mas está soterrado. O que aparece é a performance de coragem. E a substância, o álcool principalmente, ajuda a sustentar essa atuação.

Essa é a educação emocional negativa que molda o menino. Ele aprende não o que fazer, mas o que evitar. A mensagem é clara: emoção é fraqueza, medo é coisa de quem não é homem. O resultado é um sujeito que cresce sem vocabulário emocional, sem autorização para expressar o que sente e, por isso, sem saber o que fazer com a própria dor.

Essa repressão dos sentimentos primários, medo, tristeza, afeto, necessidade de cuidado, cria uma espécie de silêncio interno. O menino que engole o choro cresce inibido, retraído, tímido. Não porque nasceu assim, mas porque aprendeu a conter. E essa contenção emocional, ao longo do tempo, não some, ela se acumula. Quando chega a adolescência, ele se depara com o grupo de pares, onde o valor não é a sensibilidade, e sim a ousadia.

No grupo, o que define o “homem” é o quanto ele aguenta, o quanto ele conquista, o quanto ele se impõe. Quem é tímido, quem hesita, quem se mostra vulnerável é ridicularizado. Surge então a fórmula do pertencimento: “se eu não posso ser, eu preciso parecer“. E para parecer, ele recorre àquilo que o ajuda a vestir a roupa da coragem: a substância.

O álcool, especialmente, aparece como o primeiro facilitador. Ele desinibe, solta a voz, reduz a vergonha, mascara a insegurança. Na prática, ele empresta coragem. É ali que a dependência simbólica começa, antes mesmo da química. O sujeito percebe que, sob o efeito da substância, ele é mais engraçado, mais confiante, mais sedutor. Ele descobre uma nova forma de existir, e essa forma vem com o rótulo de “homem de verdade”.

Mas há um preço alto nisso. Quando o homem passa a depender da substância para performar, ele cria uma segunda identidade, uma versão socialmente aceita, mas emocionalmente vazia. Ele bebe para ser. E quanto mais bebe, menos ele é. O “homem de verdade” que ele mostra para o mundo vai, pouco a pouco, substituindo o sujeito que sente, que erra, que precisa de ajuda.

A comunidade masculina, a dos amigos, das festas, das comparações, reforça esse papel. Cada dose é uma prova de masculinidade, cada transa, uma medalha. O problema é que, sem perceber, ele passa a usar não pela substância em si, mas pela validação que ela proporciona. A droga vira um espelho distorcido onde ele se reconhece. E é nesse espelho que o homem perde o próprio reflexo.

Com o tempo, o corpo se adapta e cobra. O prazer químico se impõe sobre o prazer humano, e a dopamina, aquele neurotransmissor que antes sinalizava conquista, afeto, motivação, passa a responder apenas à substância. O corpo reage, mas o sentimento não acompanha. Ele tenta manter o desempenho, o mesmo humor, o mesmo vigor, mas o que antes era natural agora depende de algo externo. É assim que a performance vira prisão. O sujeito não bebe mais para curtir, mas para não desmoronar. Não usa mais para se divertir, mas para continuar sendo o homem que inventaram para ele.

A psicologia compreende essa dinâmica como um tipo de fuga da realidade afetiva. Ao invés de entrar em contato com o que dói, solidão, medo, rejeição, impotência, o homem anestesia. Ele substitui o sentir pelo fazer, o vínculo pelo desempenho, o afeto pelo uso. E assim, o que parecia força revela-se fragilidade disfarçada.

O homem que precisa se drogar para ser homem está sendo homem para os outros, e não para si.

Reconhecer isso é o primeiro passo. O tratamento psicológico não retira a masculinidade, ele a reconstrói. Ensina o sujeito a se reconhecer sem precisar se esconder, a sentir sem medo de parecer fraco, a falar sem precisar se embriagar. O que antes era fuga, vira reencontro. E é nesse ponto que o homem, pela primeira vez, pôde existir sem performance, sem disfarce, com verdade.

*Nailton Reis é Neuropsicólogo Clínico com especialização em Neuropsicologia Cognitiva Comportamental, Avaliação Psicológica e Psicologia do Trânsito em Cuiabá-MT – CRP 18/7767

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